O paulistano serviu durante cinco anos a unidade de mercenários do exército francês.
A Legião Estrangeira é uma unidade de soldados mercenários que faz parte do Exército francês e aceita o alistamento de voluntários estrangeiros de qualquer país, embora hoje seus efetivos incluam grande número de cidadãos franceses (25% a 35% do total). Ela foi fundada em março de 1831 pelo rei francês Luís Filipe pouco depois de sua chegada ao poder, para ajudar no controle das colônias francesas na África. A corporação tem o costume de manter em segredo os detalhes da identidade e do passado de seus soldados voluntários, além de permitir que se alistem com pseudônimo. O procedimento gerou uma imagem romântica, que retrata a unidade como abrigo de renegados ou pessoas com problemas com a lei em seus países de origem. Mas isso não é necessariamente verdadeiro, como mostra o caso do paulistano Mauricio Arruda Preuss, que serviu na Legião Estrangeira de 1987 a 1992. Trabalhando atualmente no Brasil como piloto de helicóptero, Preuss, de 44 anos, afirma que aprendeu muito com a experiência – mas ele não aconselha ninguém a seguir seus passos. “Eu tive muita sorte de sair vivo e inteiro, mas sei que nem sempre esta é a regra geral”, afirma o piloto na entrevista a seguir.
Por que você resolveu alistar-se na Legião Estrangeira?
Meu fascínio por assuntos militares manifestou-se desde a
adolescência. Estudei na Academia de Polícia Militar do Barro Branco
(APMBB), em São Paulo, onde obtive meu certificado de segundo grau. Meus
dois anos ali serviram para comparar minhas expectativas com a
realidade da vida numa caserna, confirmando assim minha vocação. Foi
quando decidi tentar ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras
(Aman), em Resende (RJ). Foram três anos mergulhado em apostilas, mas
não conseguia entender a necessidade de tanto conhecimento teórico de
matemática, física, química e português para quem se considerava um
guerreiro nato e cujo único desejo era usar um fuzil e lançar granadas. O
resultado não poderia ser outro. Aos 23 anos, após quatro tentativas de
ingresso na Aman, eu já havia passado a idade limite para ser aceito no
Exército. Descartando totalmente a possibilidade de não realizar meu
sonho, descobri o endereço da Legião Estrangeira, para onde escrevi
várias cartas solicitando informações. Numa bela noite, cheguei em casa,
sentei-me ao lado de meus pais, que assistiam TV, mostrei a carta que
acabara de receber e informei minha decisão. Eles olharam para mim e
nada disseram, pois sabiam que não poderiam argumentar com aquele
cabeça-dura que geraram. A decisão já estava tomada e nada, nem ninguém,
me impediria!
Onde você serviu ou combateu?
Meu contrato teve início no dia 1o de abril de 1987 e terminou em 1o
de abril de 1992. Costumo dizer que foram dez anos, e não cinco, pois
vivi intensamente aquele período. Após a instrução elementar em
Castelnaudary (cidade no sul da França), no 4RE (4o Regimento
Estrangeiro), fui designado para a famosa 13DBLE (13a Meia Brigada da
Legião Estrangeira), em Djibuti, no extremo oriente africano. A “13”,
como é carinhosamente chamada, foi criada em 1940 e passou por uma
epopéia durante a Segunda Guerra, iniciada pela campanha da Noruega até
as areias escaldantes de Bir Hakein, onde se bateu contra as tropas de
Rommel, a Afrikakorps. A 13 é uma das raras unidades do Exército francês
que tem o direito de usar o cordão verde e preto alusivo à libertação
da França do domínio nazista. Sua tradição de guerrear em clima
desértico é mantida até hoje, e os dois anos que estive lá, com suas
intermináveis marchas pelo deserto, marcaram minha alma e minha maneira
de ver a vida para sempre.
O tempo todo ficou em Djibuti?
Após as peripécias para passar algumas semanas de férias escondido
no Brasil, retorno para a cidade de Aubagne (sede da Legião Estrangeira)
e consigo finalmente minha transferência para o almejado “2o REP” (2o
Regimento Estrangeiro de Pára-Quedistas). Disseram-me certa vez que,
quando a França precisa de ajuda, ela chama a Legião, e quando a Legião
precisa de ajuda, ela chama o 2o REP. Esse é o único regimento da Legião
Estrangeira que só aceita voluntários. Localizado na ilha da Córsega,
na cidade de Calvi, conta atualmente com um efetivo de 1,6 mil
legionários pára-quedistas, divididos em nove companhias. A grande
singularidade do 2o REP é a especialização de suas quatro companhias de
combate, o que permite seu uso muito além do combate clássico da
infantaria pára-quedista.
Como era seu cotidiano como legionário? Existia uma rotina?
A rotina diária de um legionário em tempo de paz se resume a acordar
lá pelas 5h da manhã. Após o café da manhã e limpeza da caserna, há a
primeira formatura, reunindo todo o regimento, para a leitura das ordens
do dia e eventuais comentários do comandante. Em seguida, tem início o
footing, corrida matinal de mais ou menos 8 km, feita normalmente de
tênis e calção, mas podendo ser também feita com uniforme de combate.
Após o banho e um pequeno lanche, outra formatura, agora para a leitura e
distribuição das tarefas diárias da vida de um quartel, tais como
manutenção dos equipamentos das armas e serviços gerais. Meio-dia é hora
do rancho, e ninguém costuma se atrasar, pois a fome não deixa. Dizem
que o gasto calórico de um legionário é em torno de 20% maior que o de
um soldado do exército francês! Às 13h30, mais uma formatura rápida,
pois o serviço iniciado pela manhã tem de ser concluído. E finalmente
chega o final do expediente. Aqueles que não estiverem comprometidos
disciplinarmente ou com qualquer outro serviço poderão, se autorizados,
sair do quartel até as 22h ou eventualmente até a manhã seguinte.Essa rotina quase nunca dura muito tempo, pois as manobras, os treinos de tiro e os estágios consomem semanas e sempre alguns quilos dos legionários. Enfim, a rotina do legionário é de não ter rotina, de esperar o inesperado e de treinar constantemente para estar sempre no auge de sua forma física, profissional e psicológica.
Você chegou a ser ferido em serviço?
Felizmente, não. Fora alguns arranhões, escoriações e algumas crises
de malária, nada sofri de mais sério nos cinco anos. “Em combate, agirá
sem paixão e sem raiva, respeitará os inimigos vencidos, não abandonará
jamais nem seus mortos, nem seus feridos e nem suas armas.” Este é um
dos mandamentos do código de honra do legionário.
Teve algum colega morto ou gravemente ferido em ação?
Lembro-me de um legionário americano em operação no Gabão que foi
ferido por uma granada. Ele perdeu vários dedos, uma mão e parte de
“outras coisas”. Nunca mais o vi.
Encontrou outros brasileiros servindo como legionários?
Sim, tive a oportunidade de encontrar com vários deles. Durante a
instrução inicial em Castelnaudary, logo nos primeiros dias, descobri
que dois dos instrutores da companhia em que estava eram brasileiros. Um
era ex-professor de geografia e o outro não me lembro ao certo. Eram
dois gaúchos muito simpáticos. Na 13 também conheci um carioca fera no
vôlei e, ao chegar ao 2o REP, conheci vários outros. Muitos deles ainda
estão em serviço e outros já estão tentando a vida aqui fora. Segundo um
colega que ainda está de serviço, os brasileiros hoje são a sétima
nacionalidade mais numerosa na Legião Estrangeira.
Seus colegas da Legião eram muito barra-pesada?
Por incrível que pareça, o legionário mais barra-pesada que conheci
foi um brasileiro de São Paulo, 120 quilos de músculos distribuídos em
1,90 metro de altura de pura encrenca. Era tranqüilo e boa gente com a
maioria das pessoas, mas tinha uma certa dificuldade de manter-se calmo
com pessoas arrogantes e não suportava que gritassem com ele. Lembro -me
de vários legionários que ele mandou para a enfermaria e presenciei
dois ingleses que mudaram de calçada ao vê-lo se aproximar e o bar que
destruiu na cidade causou grandes gargalhadas entre os brasileiros. De
férias no Brasil, conversei com a mãe dele, que, preocupadíssima, me
perguntou se ele não corria o risco de se machucar num ambiente tão
rude... A última notícia que tivemos dele é que trabalhava como
segurança em um cassino em Monte Carlo.
Como avalia sua experiência na Legião? Encorajaria outros jovens a alistar-se como você fez?
A Legião é o lugar onde os fortes ficam fracos e os fracos ficam
fortes! Por diversas vezes, bati de encontro com minhas fraquezas, medos
e limites, e a cada vez que me levantava, estava um pouco mais
fortalecido e confiante de que a diferença entre o vencedor e o perdedor
é que o vencedor, ao cair, levantou-se mais uma vez até conseguir o que
queria. Agradeço à Legião por ter me acolhido, me quebrado e me
construído novamente como um Homem com H maiúsculo que aprendeu a honrar
sua palavra independentemente das conseqüências pessoais, a respeitar
os outros e a se fazer respeitar. Hoje, acredito que saber viver é um
eterno “aprender a morrer”.Mas não! Não aconselho ninguém a se alistar na Legião Estrangeira. Eu tive muita sorte de sair vivo e inteiro e sei que nem sempre esta é a regra geral. Por outro lado, sei que existem centenas de jovens que, como eu, quando põem uma idéia na cabeça, nada os faz mudar de idéia. Eu os aconselho fortemente a fazer como fiz: tente ter algum tipo de experiência militar aqui no Brasil, passe pelo dia-a-dia de uma caserna, confirme suas expectativas. Se, depois disso, aquela voz ainda quiser te mandar para a Legião, vá a um psiquiatra! E se nem ele conseguir calar aquela voz, então: Bon voyage!
Nenhum comentário:
Postar um comentário